Uso de anestésico e analgésico
em procedimentos dolorosos
A dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a uma lesão tecidual, seja ela real ou potencial. A dor é caracterizada como um agente estressor, mas, curiosamente, não é sempre caracterizada como algo ruim pois, sentir dor tem valor adaptativo para a sobrevivência das espécies, isto é um consenso entre os cientistas (Lindblom e colaboradores, 1986).
Assim como para os humanos, a percepção da dor pelos animais varia entre os indivíduos, de acordo com a duração e intensidade do estímulo, local do corpo e pode ser modificada pelo estado emocional e pelas experiências anteriores.
Apesar dessas variações, os bovinos sentem dor e essa condição é comprovada por terem um sistema nervoso íntegro e receptores sensoriais ativos; apresentarem mudanças fisiológicas e comportamentais em resposta a estímulos nocivos; manifestarem reações motoras protetoras, como mancar ou esfregar e/ou segurar a parte afetada do corpo; apresentarem receptores para opioides, como também respostas reduzidas a estímulos nocivos quando administrados analgésicos e anestésicos locais; demonstrarem interesse em evitar os estímulos nocivos e terem as capacidades de aprendizado e senciência. A partir desses critérios constata-se que, pelo menos, os animais vertebrados são capazes de sentirem dor, não desprezando a possibilidade de o mesmo ocorrer com os invertebrados (Elwood
e colaboradores, 2009).
Animais com dor tendem a reduzir o consumo de alimento, suprimem alguns de seus comportamentos naturais, apresentam comportamentos incomuns, emitem vocalizações características, alteram as frequências respiratória e cardíaca, liberam hormônios relacionados ao estresse e desenvolvem inflamações em diversos tecidos do organismo. Nesse cenário, destaca-se que os bovinos como parte de sua estratégia evolutiva, por serem considerados presas, costumam apresentar reações mais discretas aos estímulos dolorosos, mas isso não deve ser entendido como ausência de dor. Assim, é necessária muita atenção em reconhecer os sintomas de dor nos bovinos, o que implica no conhecimento da biologia e do comportamento natural dos bovinos. Por isso, a capacitação das pessoas que trabalham diretamente com bovinos é fundamental.
Diante do exposto, fica claro a necessidade de repensar práticas de manejo de rotina em algumas fazendas brasileiras que provocam dor nos animais, como por exemplo o manejo de castração e mochação, sem uso de anestésicos e analgésicos. Ressalta-se também que outros processos cirúrgicos e condições clínicas capazes de causar dor nos bovinos devem ser realizados seguindo protocolos de mitigação da dor.
Segundo Mellor e colaboradores (2000), dentre os manejos realizados com bovinos capazes de eliciar dor e que devem ser realizados com anestesia e analgesia, destacam-se: marcação a fogo, cauterização, castração e mochação ou descorna, dentre outros.
Embora no primeiro caso, essas ações não se mostraram eficientes (Hernandez e colaboradores, 2022). Passada a necessidade de mitigar a dor nos bovinos, entende-se que tais manejos devem ser repensados quanto a sua importância para a construção de uma pecuária moderna e sustentável. Afinal, o crescente questionamento dos consumidores e organizações não governamentais (ONGs) sobre a necessidade de melhorar o bem-estar dos animais de produção por meio da redução de práticas de manejo que causam dor está ganhando destaque (Smith, 2013). Além do uso de medicamentos anestésicos e analgésicos, diversas estratégias podem ser adotadas para minimizar a dor dos animais, incluindo: a redução ou eliminação do estímulo nocivo durante a contenção, dar preferência por métodos menos dolorosos e realizar os procedimentos em animais jovens. Em todos os casos é fundamental considerar aspectos relacionados ao custo-benefício, questões operacionais e ao bem-estar dos animais e das pessoas.
Existe o posicionamento legal quanto ao tema dor e sofrimento em animais que é, na maioria dos casos, fundamentado na Declaração Universal dos Direitos dos Animais (UNESCO, 1978). A criação de leis e políticas públicas voltadas a proteção dos animais no Brasil foi materializada a partir de 1988 com a promulgação da Constituição (Brasil, 1988) que, em seu Capítulo VI, artigo 225, § 1o, incumbe o Poder Público de “VII–proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”. No ano de 2019 foi aprovado
pelo Senado o Projeto de Lei Complementar 27/2018, que acrescentou um dispositivo à Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais), que determina que os animais não humanos possuem natureza jurídica. O Conselho Federal de Medicina Veterinária, na sua resolução No 1236/2018 (CFMV, 2018) define as situações que podem ser caracterizadas como crueldade, abuso e maus-tratos contra animais vertebrados, deixando explícito no Artigo 5 que “…consideram-se maus tratos executar procedimentos invasivos ou cirúrgicos sem os devidos cuidados anestésicos, analgésicos e higiênico-sanitários, tecnicamente
recomendados”.
Sabendo que a ciência já comprovou a capacidade senciente dos bovinos e que há regulação jurídica sobre o tema, resta um posicionamento de todos aqueles que lidam com os animais diariamente e, espera-se, que essa seja a favor de reduzir ao máximo o uso de manejos dolorosos e, que se eles forem extremamente necessários, que sejam realizados com o uso de anestésico e analgésico, conforme recomendação médica veterinária.
O link de download do Guia será disponibilizado com o envio do formulário abaixo: