O conceito
e estado da arte de bem-estar animal

Conceito

A definição científica de bem-estar animal mais aceita foi formulada por Broom (1986) como “…o bem-estar de um indivíduo é seu estado em relação às suas tentativas de lidar com seu ambiente…”, que foi alterada pela Organização Mundial de Saúde Animal (WOAH, 2019), que definiu o bem-estar animal como “… o estado físico e mental de um animal em relação às condições em que vive ou morre”.

Esta definição nos remete à definição de senciência animal, que propõe que os animais têm “…a capacidade de experimentar um ou mais dos vários estados que chamamos de ‘sentimentos’…” que envolvem consciência e capacidade cognitiva (Broom, 2016).

Um resumo da história

A publicação do livro ‘Animal Machines’, escrito por Ruth Harrison (Harisson, 1965) teve grande impacto na sociedade britânica ao mostrar, por meio de uma abordagem crítica, as consequências da “industrialização da produção animal”. Tal publicação estimulou o parlamento britânico a criar o Comitê Brambell para “…examinar as condições em que o gado é mantido em sistemas de criação intensiva e aconselhar se padrões devem ser estabelecidos no interesse de seu bem-estar e, em caso afirmativo, quais eles devem ser…” (Brambell, 1965). Ainda que o relatório apresentado pelo Comitê Brambell seja bastante extenso, com 85 páginas, alguns trechos ganharam protagonismo, dentre eles o que propôs que “… um animal deve ter pelo menos liberdade de movimentos suficiente para poder, sem dificuldade, virar-se, limpar-se, levantar-se, deitar-se e esticar seus membros…” (Brambell, 1965, p. 13), dando origem ao conceito das “Cinco Liberdades do Bem-Estar Animal”.

Posteriormente, tal conceito foi modificado pelo Farm Animal Welfare Council (FAWC, 1979), que apresentou uma nova redação para as “Cinco Liberdades de Bem-Estar Animal, como segue:

1. Livre da fome e de sede – através do acesso imediato à água potável e a uma dieta para manter a saúde e o vigor plenos;

2. Livre de desconforto – proporcionando um ambiente apropriado, incluindo abrigo e uma área de descanso confortável;

3. Livre de dor, lesões ou doenças – através de prevenção ou diagnóstico e tratamento rápidos;

4. Liberdade para expressar comportamento normal – proporcionando espaço suficiente, instalações adequadas e companhia da própria espécie do animal;

5. Livre de medo e angústia – assegurando condições e tratamento que evitem o sofrimento mental.

O legado deixado pelo conceito das “Cinco Liberdades do Bem-Estar Animal” é extraordinário mas, ao longo do tempo, este conceito passou a ser alvo de reflexões que, em alguns casos, resultaram em críticas, dentre elas a que entende que as Cinco Liberdades têm sido interpretadas como estados ideais e, portanto, impossíveis de serem alcançados e que não têm o poder de determinar o que é um nível aceitável de bem-estar animal em um sentido ético e prático, focando apenas em experiências e estados negativos, ignorando a promoção de estados positivos de bem-estar animal (Mellor e Reid, 1994; Mellor, 2016). Há também o inconveniente de nos depararmos com situações em que as Cinco Liberdades são apresentadas como algo que é caracterizado como direitos dos animais (Mellor, 2016), dificultando sua aceitação e avanços em sua aplicação prática no meio pecuário.

Provavelmente a primeira iniciativa para atualizar o conceito das Cinco Liberdades foi realizada por Mellor e Reid (1994), quando propuseram o conceito dos “Cinco Domínios de Bem-estar Animal”, definindo quatro domínios funcionais (nutrição, ambiente, saúde e comportamento) e um domínio mental. A estruturação desses domínios foi posteriormente alterada por Mellor e colaboradores (2020), que propuseram substituir o Domínio do Comportamento pelo Domínio das Interações Comportamentais, concentrando-se na evidência de que animais procuram conscientemente objetivos específicos quando interagem comportamentalmente com o ambiente, com outros animais não humanos e com humanos, devendo-se abordar todas as condições, negativas e positivas, de cada um dos Domínios, como ilustrado na figura a seguir.

Os 5 Domínios do bem-estar Animal (Mellor e colaboradores, 2020).

 

É importante notar que o próprio ‘Farm Animal Welfare Council’ reconheceu que era necessário avançar para garantir que “… todo e qualquer animal de produção tenha uma vida digna de ser vivida…”. Essa nova abordagem enfatizou a qualidade de vida dos animais, classificando-a como: “…uma vida que não vale a pena ser vivida, uma vida que vale a pena ser vivida e uma vida boa…” e que, para proporcionar ao animal uma vida digna de ser vivida, é preciso adotar “…boa criação, manejo e transporte cuidadosos, abate humanitário e, acima de tudo, criadores qualificados e conscienciosos…” (FAWC, 2009, p. ii e iii, respectivamente).

Com a publicação do livro “Animal Suffering” (Dawkins, 1980), ficou claro que para a avaliação do bem-estar animal é necessário reconhecer os animais como seres sencientes, que têm capacidade para “…experimentar estados afetivos positivos e negativos…” (Duncan, 2006). Esse reconhecimento ganhou força com a Declaração de Cambridge, ao enunciar que: “…Evidências convergentes indicam que os animais não humanos possuem os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos dos estados de consciência, juntamente com a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem estes substratos neurológicos…” (Low, 2012).

Assim, é evidente que a ciência do bem-estar animal passou por uma clara evolução teórica, com reflexos nos esquemas de avaliação que, nos dias de hoje, utiliza além de indicadores baseados nos recursos (p.ex. disponibilidade de alimento e água), no ambiente (p.ex. temperatura do ar) e nos estados afetivos negativos experimentados pelos animais (p.ex. fome, sede, dor e medo), inclui também a avaliação dos estados positivos (p.ex., prazer e contentamento). Essas mudanças podem ser consideradas um claro processo de evolução conceitual e metodológica na ciência do bem-estar animal.

Exercícios sobre como aplicar o modelo dos “Cinco Domínios do Bem-estar Animal”

Esses exercícios têm como base a identificação de prováveis causas de um problema que impacta negativamente o bem-estar dos
animais, associando-as com cada um dos Cinco Domínios de Bem-estar Animal.

Falhas na cura do umbigo do bezerro recém-nascido

A causa mais provável de infecções no umbigo dos bezerros (onfalites ou onfaloflebites) são as falhas no manejo de cura do umbigo do bezerro recém-nascido (Domínio do Ambiente) e traz, como consequência, problemas no Domínio da Saúde (miíases e infecções), que são agravados quando os bezerros não recebem tratamento adequado e em tempo, podendo causar poliartrite (caruara) e infecção generalizada. Situações como estas levam a apatia (Domínio das Interações Comportamentais) e perda de apetite, com impacto direto no Domínio da Nutrição. Com esse quadro, não há como evitar as sensações e estados de desprazer, como dor, debilidade e frustração, criando um estado mental negativo.

Alta densidade nos currais de confinamento de bovinos

A alta densidade de animais nos currais de confinamento (Domínio do Ambiente) é a principal causa de acúmulo de lama e de matéria orgânica, alta concentração de poeira no ar e aumento na competição social por recursos (Domínio das Interações Comportamentais).

Essas condições combinadas comprometem o Domínio da Nutrição, pois, muitas vezes, os animais têm dificuldades de acessar o cocho e o bebedouro, e o Domínio da Saúde, em função do maior risco de desenvolver lesões nos cascos e doenças que afetam o trato respiratório.

Nessas condições, não há como evitar as sensações e estados de desprazer, como medo, debilidade, dor, ansiedade, frustração e
desesperança, criando um estado mental negativo; e, quando os bovinos não recebem tratamento adequado e em tempo, pode resultar na morte de animais.

Falhas durante o manejo no curral

As falhas durante a realização dos manejos no curral (Domínio do Ambiente) causam estresse nos animais, fazendo com que fiquem mais reativos aos humanos e aos manejos (Domínio das Interações Comportamentais), o que aumenta o risco de acidentes com os animais e os vaqueiros e o tempo necessário para se realizar os manejos. Além disso, quando os bovinos ficam presos no curral por um longo período, a ingestão de água e alimentos fica prejudicada (Domínio da Nutrição). Essas condições combinadas têm impacto negativo no Domínio da Saúde, podendo ocasionar alterações funcionais, hematomas e fraturas, além de aumentar o risco de os animais contraírem doenças oportunistas devido à queda na resposta imune provocada pelo estresse.

Nessas condições, os animais também tendem a desenvolver sensações e estados mentais de desprazer, como medo, dor e ansiedade.

plugins premium WordPress