Segundo o diretor de Sustentabilidade da companhia no Brasil, Lúcio Vicente, a rede de supermercados, que é a maior compradora de carne bovina do Brasil, vai expandir programa de monitoramento de origem dos alimentos vendidos
O Carrefour está expandindo seu programa de rastreamento de alimentos in natura com o uso da tecnologia blockchain. Atualmente, apenas carne suína e laranja estão inseridas na plataforma, mas o diretor de Sustentabilidade do Carrefour Brasil, Lúcio Vicente, diz que em breve novos produtos do setor de frutas, legumes e verduras também estarão lá.
A carne bovina, sempre no foco de ambientalistas, deve ter sua entrada na plataforma blockchain do grupo facilitada após grandes frigoríficos terem apresentado, recentemente, ambiciosos programas de rastreabilidade e de sustentabilidade na cadeia produtiva, acrescenta Vicente, em entrevista exclusiva ao Estadão/Broadcast.
O executivo explica que a tecnologia blockchain permite rastrear todo o caminho percorrido pelo alimento desde a fazenda, para fornecer aos consumidores informações sobre uma série de produtos, principalmente aqueles in natura.
Sobre as lojas de atacado, ou “atacarejos”, como Atacadão, que fazem parte da empresa, Vicente afirma que a política é a mesma em relação à adotada na rede de hipermercados: isso, segundo ele, é uma estratégia do Grupo Carrefour, voltada para todas as lojas, dos hipermercados, passando pelos atacadistas até as lojas de bairro e express. Veja a seguir os principais pontos da entrevista.
Como é realizado o rastreamento de alimentos no Carrefour, desde a propriedade rural até a gôndola do supermercado? E como o consumidor tem a garantia de que o produto de fato é rastreado?
Para cada um de seus fornecedores, o Carrefour tem regras muito claras de governança. Existe um processo natural de compra, de armazenamento e de distribuição desses alimentos e de venda nas lojas. O sistema de logística, de entrega dos produtos, é muito controlado. Mas há alguns desses produtos, principalmente alimentos frescos, como frutas, legumes e verduras, e também proteína animal, que têm ganhado relevância na nossa estrutura de rastreabilidade. Hoje o consumidor tem informações de origem da carne suína e da laranja na nossa nova tecnologia blockchain, mas os produtos serão ampliados nesta plataforma. A ideia, mais do que já acontece no nosso programa Garantia de Origem, que existe há anos, é incluir atributos que qualificam o alimento para o consumidor. Que o consumidor possa saber também quem é a pessoa que o produziu, onde fica a fazenda, o packing house, qual distância o alimento percorreu até o centro de distribuição e a loja, entre outras informações.
Na carne suína e na laranja isso já acontece, então?
Fomos os primeiros varejistas a adotar essa estratégia nessas duas cadeias. No caso dos suínos, cada animal é registrado desde o seu nascimento. Ele ganha uma identificação dentro de uma plataforma blockchain, que garante a confidencialidade dos dados, e cada etapa da vida daquele animal vai sendo inserida ali. Entram vacinação, alimentação e momentos de transporte, entre outros dados. O consumidor tem acesso a essas informações escaneando um QR code, e a partir daí consegue dados adicionais, como a história do pecuarista e do produto. Ele passa a ter um outro nível de informação, que agrada mais do que simplesmente ter uma linha do tempo do que aconteceu com aquele alimento, o que cria uma conexão maior entre o consumidor e o produto, que adquire uma “identidade” para ele.
No caso da carne suína, essa rastreabilidade é facilitada porque os animais são alojados em galpões e os suinocultores geralmente trabalham em sistema de integração com grandes indústrias. E na carne bovina, que tem uma cadeia mais complexa, porque os animais são geralmente criados a pasto e há várias etapas no processo produtivo, como isso se dá?
É importante reforçar que, desde a década de 1990, o Carrefour tem o trabalho do selo Garantia de Origem. Desde então, a companhia vem trabalhando na rastreabilidade do que compra para revender e, de lá para cá, também fazemos parte de diversas mesas técnicas, como o Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável (GTPS) e de alianças que têm o compromisso da sustentabilidade. Vale lembrar que temos o compromisso global de combate ao desmatamento e que toda a ação do Carrefour está alinhada a esse compromisso. Participamos, por exemplo, do processo de elaboração de um protocolo harmonizado (para a sustentabilidade no setor de carne bovina) junto ao Ministério Público Federal e à ONG Imaflora, que uniu as maiores redes do varejo do País e os três maiores frigoríficos (Minerva, JBS e Marfrig). Esse documento ajudou a regrar, de certa forma, as premissas técnicas básicas para que qualquer varejista ou frigorífico pudesse utilizar, dentro de seus sistemas de monitoramento, protocolos sustentáveis. É importante dizer isso porque acabamos tendo um conhecimento mais apurado em relação ao que representa a carne bovina dentro do sistema produtivo e todos os impactos que os fornecedores indiretos de gado (fornecedores de bezerros e bois magros para engorda) também causam na cadeia.
Na prática, como funciona o rastreamento da carne bovina para o Carrefour?
Todos os frigoríficos fornecedores de carne assinam, por exemplo, um documento no qual se comprometem a investir em rastreabilidade e sustentabilidade dentro da cadeia de compra direta e indireta, estimulando, também, o engajamento dos produtores. Esse é um primeiro passo na etapa de governança – o Carrefour passa a ter um fornecedor (de carne bovina) que deve investir na cadeia para poder avançar no processo de conhecimento sobre quem é o fornecedor direto e indireto dele. Posto isso, temos as questões de governança ligadas a contratos comerciais mais rígidos, que preconizam inclusive bloqueios e sistemas de bloqueios gradativos. Assim, se, em qualquer momento, no nosso monitoramento, for detectado que houve algum tipo de não-compliance com a nossa política, automaticamente o frigorífico é notificado e nós informamos que não permitimos aquilo e pode haver uma penalidade, como suspensão da compra atual ou mesmo suspensão do fornecedor, caso a reincidência seja frequente. Acho que este é um ponto importante porque faz parte de um processo contratual.
O Carrefour é a maior rede varejista do País. É também o maior comprador de carne bovina?
Sim. Mas, apesar de sermos os maiores compradores, não necessariamente temos a maior concentração de compras dentro de determinadas regiões. Porque há mercados regionais nos quais temos poucas lojas e a incidência de compras é menor. De todo modo, todo frigorífico que fornece para nós é obrigado a passar a origem de compra deles, ou seja, de quais fazendas adquiriram o boi. Temos também uma ferramenta de monitoramento – a única rede varejista do País que dispõe disso -, em parceria com a Agrotools, que monitora as fazendas de onde a matéria-prima se originou e, automaticamente, faz o cruzamento de todos os critérios que não são permitidos dentro da nossa política, como áreas desmatadas ilegalmente, embargadas pelo Ibama, fazendas na lista do trabalho escravo, invasão de reservas ambientais e áreas indígenas. Todos os dados são rodados nesta ferramenta, que indica se aquela compra veio de uma fazenda com algum problema. A segunda etapa é que, pelo fato de nós trabalharmos neste monitoramento há muitos anos, conseguimos mapear as regiões que têm maior risco de incidência de desmatamento. Nessas regiões, exigimos dos frigoríficos uma maior acurácia na fiscalização dos seus fornecedores de gado. Ou seja, já há um monitoramento rotineiro e outro ainda mais rigoroso nessas regiões.
Grandes empresas frigoríficas, como JBS, Minerva e Marfrig, lançaram recentemente ambiciosas iniciativas no sentido de monitorar a cadeia produtiva bovina como um todo (com fornecedores diretos e indiretos) e também frear o desmatamento da Amazônia e outros biomas associado à pecuária. O Carrefour viu alguma mudança de atitude desses frigoríficos na relação com o hipermercado?
Sim, tem mudado, sobretudo na compreensão de por que precisamos ter cada vez mais essas indústrias da carne investindo na cadeia produtiva. Acreditamos também que essas iniciativas trazem uma mudança no sentido de dar maior visibilidade para os processos dos frigoríficos ligados às questões ambientais e que agora estão sendo expostas. Assim, talvez o que tenha mudado é a oportunidade de eles mostrarem suas próprias cadeias produtivas e, principalmente, reconhecer a fragilidade que existe em todos os setores.
Aumentou a transparência?
Acho que aumentou a possibilidade de trazer esse tipo de informação para a frente (como os frigoríficos efetivam suas compras de animais). Isso garante maior visibilidade para o público em geral e também atende às maiores pressões por parte dos investidores, no sentido de garantir uma cadeia socioambiental sustentável.
Conforme o monitoramento do Carrefour, as irregularidades diminuíram na cadeia de carne bovina?
São raros os casos em que identificamos alguma irregularidade. De certa forma, temos uma compra bastante verificada em relação ao processo, estabelecido há algum tempo. O que identificamos agora é que se abriu uma possibilidade, cada vez mais próxima, de nós fazermos com a carne bovina o mesmo que já estamos fazendo com a suína. Poderemos ter a oportunidade de, em alguns casos e regiões, fazer a rastreabilidade dos bovinos desde o nascimento do bezerro.
Para isso vocês vão precisar da parceria dos frigoríficos, afinal, eles centralizam as compras dos bois. Há alguma em vista?
Não exatamente. O que estamos fazendo, em primeiro lugar, é nos aproximar de todos os nossos fornecedores regionais, desde os grandes até os médios e pequenos frigoríficos, apresentando nossa agenda. A ideia é tentar engajar os frigoríficos, convencendo-os de que não tem volta a rastreabilidade e isso em todas as cadeias alimentares. Para sermos líderes, devemos fazer com que os frigoríficos entendam que isso não é uma agenda exclusiva do Carrefour. Não adianta eu, como único varejista, instituir isso nas minhas regras porque eu perco em competitividade – já que, se eu pressionar demais o frigorífico, ele vai vender para outra rede varejista. Assim, os frigoríficos têm de se convencer que sustentabilidade e rastreabilidade não são questão de “moda”. Na verdade, a rastreabilidade está se transformando em algo realmente útil sob o ponto de vista sanitário, de controle, de origem, para ver se o produto não passa por algum tipo de problema. Esse diálogo já tem sido travado e temos percebido que há uma aderência quase que natural porque todos (consumidor, varejo e investidores), de certa maneira, estão cobrando isso da indústria frigorífica.
O Carrefour concretizou recentemente programas de expansão, com a aquisição, por exemplo, do BIG, e também com maiores investimentos no Atacadão. A mesma política de rastreabilidade que o grupo aplica nos hipermercados é aplicada nos atacarejos?
Essas políticas são transversais no Grupo Carrefour e não se distinguem por causa do tipo de negócio. Os atacados (atacarejos) já contam com o mesmo sistema de verificação de dados sobre a origem da carne bovina, por exemplo. Existe, é claro, uma diferença de mix de produtos entre o atacado e o varejo – no atacado estão à venda cerca de 4.500 artigos, de diferentes categorias. No hipermercado, cerca de 60 mil. Então há uma diferença grande em relação a categorias à venda e à sua profundidade. Mesmo assim, nossas políticas de rastreabilidade e sustentabilidade se aplicam a todo o grupo. Se o cliente vai no Atacadão, encontra ali uma carne bovina rastreada do mesmo modo com que foi feito no hipermercado, ou num mercado de bairro ou numa loja express. Um ponto importante é que o alimento vendido por nós seja acessível, então não podemos transformar sustentabilidade e rastreabilidade em uma coisa de nicho. Uma comida rastreada não precisa ser cara. Isso é uma das iniciativas previstas no “Act for Food”, um amplo programa do Carrefour global, que pretende tornar a comida saudável, controlada, sustentável, acessível sob o ponto de vista econômico e também em relação às informações que ele recebe sobre ela. Somos varejistas de massa e precisamos levar esses conceitos para grande parte da população.
Quais os próximos investimentos do Grupo Carrefour na direção da rastreabilidade e sustentabilidade?
Temos ampliado bastante o contato do consumidor com a nossa tecnologia. Recentemente, inserimos no aplicativo do Carrefour uma ferramenta que fornece ao cliente mais informação ainda sobre a rastreabilidade dos alimentos. E, de modo geral, visamos avançar mais ainda nessa questão, ampliando o número de cadeias produtivas na nossa plataforma para que tenhamos cada vez mais produtos rastreados.
Quais produtos estão na fila agora?
Temos alguns no setor de fruticultura, mas não posso abrir agora. Só posso dizer que frutas, legumes e verduras e produtos frescos terão cada vez mais este tipo de tecnologia de rastreabilidade à disposição.