Por Mariana Grilli, para Um Só Planeta
Não é de hoje que o Brasil busca avançar na rastreabilidade do gado no território nacional. Também não é apenas uma ou outra pessoa que se empenha em avançar nesta temática da pecuária brasileira. São dezenas de entidade setoriais, associações da sociedade civil, companhias privadas e políticos se debruçando sobre a transparência do trajeto que o boi faz desde a fase do bezerro até chegar ao frigorífico.
As informações que constam em instrumentos já existentes no país, como a Guia de Trânsito Animal (GTA) e o Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (Sisbov), agora precisam conversar entre si. Isso gera informação e contribui para a governança do agronegócio em tempos imperativos de agenda ESG (sigla em inglês para melhores práticas ambientais, sociais e de governança).
No entanto, algumas fontes ouvidas para essa reportagem preferiram não se identificar pelo seguinte motivo: há falta de consenso entre os diferentes stakeholders para colocar de pé um sistema de rastreabilidade que realmente seja transparente. Ter um senso comum sobre a necessidade da rastreabilidade não significa concordar com metodologias ou prazos.
Netto Schimansky, presidente da Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável, está à frente de uma proposta de política nacional encaminhada no mês de março ao Ministério da Agricultura e Pecuária. Ele defende que para o Brasil consiga “provar que a pecuária não é o grande vilão” do meio ambiente.
“Temos que deixar isso visível. Não adianta ver o Brasil no macro, mas [é preciso] ir no individuo, porque levantamos o questionamento e vamos mostrar se está se fazendo certo ou errado. Se estiver errado, vamos corrigir”, ele enfatiza.
‘CNH do boi’
Para contribuir para esta discussão, o Ministério da Agricultura e Pecuária está em conversas constantes com a Mesa Brasileira de Pecuária Sustentável e, entre os encontros, propôs algo que, na analogia da secretária Renata Miranda, seria a ‘CNH do boi’. Ela enfatiza que rastreabilidade não é o mesmo que conformidade, mas sim uma forma de mapear o histórico dos dados.
À frente da Secretaria de Inovação e Desenvolvimento Sustentável (SDI), Renata diz que “pecuária rastreável não é sinônimo de pecuária sustentável”, mas são, novamente, os dados que vão proporcionar este diagnóstico. É esta plataforma de inteligência que Renata Miranda tem a missão de implementar e colher resultados, de preferência, até a COP30, em 2025.
“A plataforma não vai gerar nada novo, mas vai reconhecer e utilizar essa base de dados para fazer os cruzamentos corretos e fornecer ao produtor rural ao que é de direito dele, como um acesso à CNH, que dá acesso às informações do veículo, multas. A gente vai dar a cidadania, as informações relacionadas ao compromisso dele de produção”, ela explica.
Uma das bases de dados considerada pela secretária é o Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (PRODES), com mais de 30 anos de análise de dados. “Temos inúmeras bases espalhadas no Brasil, mas cada uma delas só respondendo ao que foi perguntado. Elas são extremamente ricas e agora temos que construir uma política pública de maior amplitude, analisar essa base de dados e trazer para uma interpretação oficial”, diz Renata Miranda.
“Os números eram um meio, mas agora são um produto, um ativo diferenciadíssimo do Brasil. A economia de dados precisa ser olhada com mais cuidado e gerar credibilidade e transparência”, ela complementa.
É este documento único que a Secretaria de Inovação e Desenvolvimento Sustentável (SDI) quer oferecer para contribuir com a construção da rastreabilidade. Mas os próprios pecuaristas têm receio do quanto isto pode segregar o mercado e deixar à margem aqueles que precisarem de mais tempo para se adequar, como pecuaristas de pequeno porte na Amazônia.
Risco de exclusão de produtores
A questão principal é que não basta os frigoríficos terem transparência sobre o fornecedor direto, pois o que se demanda hoje em dia – principalmente – é o histórico sobre os indiretos. Imagine que o mesmo boi pode transitar por mais de sete fazendas ao longo do ciclo de vida. Em quais fazendas o animal esteve? Responder isto se tornou dever do todos os atores envolvidos na pecuária brasileira.
“Temos que pensar como País numa forma de dar prazo e condições para todos se adequarem, principalmente para os pequenos produtores que muitas vezes são os criadores de bezerro, onde tudo se inicia”, diz Caio Penido, pecuarista na região da Serra do Roncador, em Mato Grosso.
Voz ativa no debate sobre sustentabilidade no segmento, ele diz que é preciso evitar o que chama de “apartheid de produtores”. “Uma política de rastreabilidade precisa se atentar ao risco de exclusão daqueles pecuaristas que estão mais atrasados tecnologicamente, como agricultores familiares e assentados. Não podemos ter um apartheid de produtores”, diz.
Isso significa que, se a rastreabilidade não estiver acompanhada de assistência técnica e recursos, os grandes produtores que conseguem inovar, investir em genética e profissionalização se mantém no mercado, e os sítios e pequenos loteamentos onde a pecuária é o ganha pão poderão ficar em segundo plano.
Incentivos financeiros para que os pecuaristas se engajem em contribuir para a rastreabilidade nacional podem ser uma alternativa, a exemplo do Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) ou mecanismos mais concretos sobre o mercado de carbono para quem atender aos protocolos de carne carbono zero.
A era dos dados
Mais uma vez, o setor dentro e fora da porteira se depara com a era dos dados — e uni-los pode ser a chave para uma mudança disruptiva na atividade. Quem já olha para este mercado como oportunidade há anos é Sergio Rocha, CEO da Agrotools. A startup atingiu maturidade e atualmente analisa algo como 4,5 milhões de hectares de territórios rurais.
“Para o [fornecedor] direto, todo mundo tem uma solução, mas ninguém tem um protocolo único baseado em inovação e tecnologia. É preciso o endosso da academia, do terceiro setor e da iniciativa privada para ajudar nesse processo de advocacy e democratização para todo o supply chain”, comenta o executivo.
De acordo com ele, quase 60% do abate brasileiro passa pelas plataformas da Agrotools, mas ainda sem chegar no detalhe do animal individualmente. Mesmo assim, a empresa já elaborou dezenas de protocolos de compra da carne por meio da inteligência de dados, seja trabalhando com o Greenpeace ou com o McDonalds global.
Propositivo, Sergio Rocha vê o copo meio cheio e acredita que a fase é de despertar para uma nova concepção de pecuária no Brasil. “Defendemos a reinserção daqueles pecuaristas que, por desconhecimento e por não saber como se atualizar, estão na ilegalidade. Estamos falando de um problema social”, afirma.
Fonte: Um Só Planeta – Globo