Em oito anos, o governo federal espera ter o registro sistematizado de todas as vacas, bois, touros e outros bovinos que integram o rebanho nacional. O Plano Nacional de Identificação de Bovinos e Búfalos foi lançado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) do final do ano passado e prevê que a rastreabilidade bovina alcance todo o gado até 2032, por meio de tecnologias que vão de chips em brincos ao uso de radiofrequência. Apesar de parecer um prazo longo, a adaptação exige desafios em toda a cadeia, como explicam especialistas e representantes do setor.
De acordo com o plano lançado pelo Mapa, a fase de transição para a implementação total da rastreabilidade conta com três etapas. Na primeira fase, que se encerra já no próximo ano, o ministério, em parceria com outras entidades, como a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), se concentra na produção de uma base nacional de dados, com informações a respeito dos rebanhos e sistemas produtivos.
Na etapa seguinte, que começa em 2027 e se encerra em 2029, inicia-se a identificação individual dos bovinos, por meio de tecnologias especiais para o rastreamento. Os dispositivos mais utilizados para essa técnica envolvem o uso de chips eletrônicos, que podem ser instalados em brincos ou por meio de ingestão, no estômago do animal. Também é possível usar QR Codes de softwares para smartphones e tablets, além de radiofrequência, por meio de etiquetas equipadas com chips para a identificação.
Por fim, a terceira fase do plano de rastreabilidade envolve a expansão do sistema a 100% do rebanho bovino de todo o Brasil até 2032. É necessário destacar que já existe rastreamento desses animais no país há pelo menos mais de duas décadas. Em 2001, o governo brasileiro lançou o Sistema Brasileiro de Certificação de Origem (Sisbov), em resposta à preocupação de outros países após o surgimento de diversos casos da doença de Vaca Louca, principalmente na União Europeia. Cinco anos mais tarde, o nome foi alterado para Serviço de Rastreabilidade da Cadeia de Bovinos e Bubalinos.
Apesar das mudanças, o sistema foi recentemente considerado obsoleto para inspetores da União Europeia que vieram ao Brasil para avaliar o rebanho do país. Nesse contexto, o bloco promoveu embargo à carne brasileira, limitando o número de propriedades rurais que exportavam para os países europeus em 95, ante 5 mil que praticavam o comércio anteriormente. Diante disso, a pressão para regulamentar a rastreabilidade fez com que o governo federal se debruçasse sobre o tema.
No primeiro semestre de 2024, o Ministério da Agricultura lançou um grupo de trabalho específico para debater sobre o tema. Após meses de discussão entre entidades e o setor público, chegou-se a um consenso sobre a rastreabilidade que, na visão do secretário de Defesa Agropecuária do Mapa, Carlos Goulart, atendeu a diversas pautas do segmento, além de chegar a um plano que ele considera factível.
“É um plano que atende às preocupações na medida do possível. A gente conseguiu atender às preocupações dos diferentes elos da cadeia, desde o produtor até os diferentes tipos de indústria. Não atendeu na plenitude à ansiedade de todo mundo — a gente sempre comenta isso — mas o que foi possível”, avalia o secretário.
Sobre o prazo de oito anos para o período de transição, Goulart avalia que é um tempo justo, ao considerar as dimensões geográficas e do rebanho brasileiro. “Não significa que a gente não possa antecipar a conclusão desse período ou até alongá-lo. Não significa que todo mundo concorda, mas é um prazo de acordo com o tamanho do rebanho e do desafio brasileiro, não está nem muito curto, nem muito longo”, considera.
Usabilidade
Presente no Brasil desde o início dos anos 2000, a rastreabilidade bovina atravessou diferentes períodos até chegar às condições atuais. Com o avanço da tecnologia, foi possível utilizar softwares mais inteligentes para controlar o rebanho e avaliar itens como emissão de carbono e produtividade. Um exemplo que vem sendo desenvolvido e utilizado no país é o uso de sensores locais e imagens de satélite para monitorar bovinos e outros animais.
Marcos Ferronato, CEO da NetWord Tecnologia Agrícola, que desenvolve esse sistema, explica que o rastreamento é conduzido de forma totalmente sensorial, sendo possível levantar dados em tempo real sobre emissões e manejo do gado, por exemplo. “A gente aproveita esse monitoramento e nós avaliamos, por exemplo, a qualidade do solo, para que eu tenha um pasto mais saudável, e aí a gente consegue determinar, por exemplo, qual o percentual que determinada propriedade usou de orgânico biológico ou químico. Então a gente consegue determinar isso com os nossos sensores e consegue dar uma rastreabilidade de ponta a ponta”, explica Ferronato.
Em mais de dez anos, o empresário afirma que foi possível passar de 1,5 mil hectares de terra monitorada no primeiro ciclo em que foi testada, para 100 mil hectares, no ciclo mais recente. Ele ainda afirma que a recepção dos produtores tem sido positiva, tanto do ponto de vista da rastreabilidade quanto da geração de créditos de carbono.
“O que a gente tem visto são práticas mais sustentáveis de manejo, adubação orgânica, uso de defensivos biológicos, planta de cobertura, agricultura regenerativa, tem remetido a melhores resultados e tem remetido a mais crédito de carbono na ponta”, conclui o CEO.
Contraponto
Apesar de trazer inovações e ter o objetivo de dar mais qualidade ao produto brasileiro, algumas demandas não foram atendidas no plano nacional, após o término das discussões no grupo de trabalho. A diretora executiva da Sociedade Rural Brasileira (SRB), Patrícia Medeiros, ressalta que o único ponto em que a entidade se posicionou contrária ao plano foi o da obrigatoriedade para que o pecuarista, independente de fornecer o gado para o mercado externo e para mercados que exijam a rastreabilidade, tenha que adotar esse custo adicional.
“A gente percebe os números realmente altos do setor, mas existem perfis diferentes de produtores. Então, existe o produtor que não vende para o exterior, ele vende o gado para o mercado interno e, nesse caso, não seria necessária rastreabilidade. Já no caso de alguns mercados, como, por exemplo, da União Europeia, eles já exigem a rastreabilidade de bovinos. Mas são poucos os produtores que exportam para lá no país”, frisa a diretora.
Diante disso, a SRB defendia que a adesão pudesse ser voluntária, para evitar custos que a entidade avalia como desnecessários para determinados produtores. “Nós sempre tentamos mostrar o custo financeiro e até emocional para o produtor se adaptar. Toda atividade econômica precisa de subsídio financeiro e de pessoas treinadas para isso. Então, isso realmente foi levantado e nós estamos trabalhando para que isso aconteça”, destaca, ainda, Medeiros.
Outro questionamento apresentado foi relacionado à segurança de dados. Na avaliação do vice-presidente da Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável, Lisandro Inakake, ainda há dúvidas sobre o tipo de informação que pode ser gerada e quem terá acesso aos dados. “A partir do momento em que você cria um sistema, você tem que criar proteções das informações que permitam o acesso diferenciado a cada ator da cadeia que tem algum direito em acessar essa informação”, considera.
Em relação à sustentabilidade, foco da Mesa Brasileira, o vice-presidente avalia que o novo plano deve reforçar a qualidade da carne brasileira a outros países. “Tem uma rastreabilidade, inclusive com o registro individual, que assegura essa informação. Aí precisa dar um passo em relação à cadeia como um todo. A gente tem de 10% a 15% da cadeia ainda com sigilo completo. Ao demonstrar a origem, conseguimos, com maior qualidade, mostrar que há sustentabilidade”, pondera.
Desafios
Mesmo presente há mais de duas décadas no país, a rastreabilidade bovina ainda é incipiente em relação a todo o rebanho nacional. De acordo com informações da Base Nacional de Dados do Sisbov, a porcentagem atual de bovinos brasileiros que já são rastreados é de apenas 2%, ou aproximadamente 4 milhões de cabeças.
Para Carlos Goulart, secretário do Mapa, o principal desafio nesta fase de transição é fazer com que os órgãos estaduais e federal implementem o sistema. “Porque a gente já tem sistema vigente para trânsito das informações por lote. A gente precisa fazer essa qualificação dos sistemas informatizados para fazer individual. E esse é o maior desafio”, entende Goulart.
Com a exigência de mais padrões de qualidade para a exportação com a União Europeia, o coordenador de produção animal da CNA, João Paulo Franco, avalia que a regulamentação é importante para dar mais segurança e qualidade ao país que mais exporta carne bovina no mundo. “Todos os animais que vão para a Europa são provenientes de fazendas certificadas. Agora, a diferença é que vai ser obrigatório, para 100% do rebanho. Isso coloca o Brasil como o detentor do maior rebanho comercial do mundo com o maior sistema de rastreabilidade do mundo”, Considera Franco.
Fonte: Correio Braziliense