Por Romualdo Venâncio
A notícia sobre o adiamento de um ano para a entrada em vigor da European Union Deforestation-Free Regulation (EUDR), a lei antidesmatamento da União Europeia, deu uma acalmada nos ânimos dos representantes da cadeia produtiva de carne bovina do Brasil. A nova legislação europeia deveria começar a valer no final de 2024, mas, após grande pressão externa, a data foi alterada para 30 de dezembro de 2025, no caso de grandes empresas, e 2026, se forem micro e pequenas companhias. O anúncio da EUDR provocou uma série de questionamentos no Brasil, sobretudo de quem representa a produção pecuária. Se por um lado os europeus pretendem impor exigências mais severas para permitir apenas a importação de produtos oriundos de áreas livres de desmatamento, do lado de cá do Oceano Atlântico tal cobrança é contestada sob a argumentação de que o Código Florestal brasileiro já é um dos mais rigorosos do planeta e que a pecuária está comprometida com o desmatamento ilegal zero, mantendo o que for permitido por lei.
Uma das indagações em relação à EUDR diz respeito ao fato de ignorar as legislações ambientais e a dinâmica da vegetação de cada país, o que coloca em desvantagem nações que ainda têm grande parte de sua vegetação nativa preservada, conforme análise do Núcleo de Agronegócio Global do Insper. Por causa dessa abordagem, também não há diferenciação sobre o que é desmatamento legal e ilegal, criando barreiras que podem não refletir a realidade das práticas sustentáveis adotadas localmente.
De uma forma ou de outra, o desconforto inicial causado pelo anúncio da iniciativa dos europeus promoveu uma ampliação dos debates sobre sustentabilidade, rastreabilidade, transparência e as derivações desses tópicos na cadeia produtiva de carne bovina. Sem a pressão do prazo apertado, representantes dos segmentos ligados à pecuária de corte têm melhores condições de promover conversas que levem a decisões e soluções mais abrangentes, precisas e efetivas. Em um setor baseado na coletividade, não se chega a tal avanço sem diálogo.
A Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável (MBPS), organização que reúne 60 organizações de todos os elos da cadeia de produção de carne bovina com o objetivo comum de promover a sustentabilidade na pecuária, realizou uma série de debates sobre “oportunidades e soluções para o produtor atender a EUDR”. Sendo o Brasil o maior exportador global de carne bovina, é fundamental que enderece os problemas que ainda persistem na cadeia para que atenda às novas regulações dos mercados.
Entre as iniciativas que vêm fazendo a diferença nessa questão, a MBPS destaca o Programa Boi na Linha, criado pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), associação civil sem fins lucrativos que auxilia o Ministério Público Federal na implementação do Termo de Ajustamento de Conduta da Carne. Também conhecido como TAC da Carne, o termo foi firmado com diversos frigoríficos que operam na Amazônia Legal, e é um dos principais instrumentos de controle do desmatamento na cadeia da pecuária bovina no Brasil.
Não há como falar em pecuária sustentável sem citar o Mato Grosso. Primeiro, porque seu território é composto por três biomas – Amazônia (o mais abrangente), Cerrado e Pantanal –, o que é essencial para a composição da biodiversidade local. Ou seja, o tema preservação está presente em toda discussão sobre a produção de carne bovina. O segundo ponto é que o estado tem liderado a agenda de debates sobre o equilíbrio entre a produção de carne bovina e a preservação ambiental.
E não poderia ser diferente, levando-se em conta a posição mato-grossense no ranking nacional da pecuária. Segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), o estado tem o maior rebanho bovino do País, com 34 milhões de cabeças (17% do total). Além disso, está à frente nos abates, com 7,1 milhões de cabeças por ano, e responde por 20% da exportação brasileira de carne bovina.
Prova de como a pecuária mato-grossense está em sintonia com as discussões globais sobre sustentabilidade socioambiental e econômica é a promoção do debate entre todos os segmentos ligados à produção de carne bovina. Foi o que se viu durante a segunda edição do encontro “Diálogos Boi na Linha”, realizado recentemente na capital, Cuiabá. O foco do evento se dividiu entre transparência, legalidade e inclusão, com o intuito de colocar sobre a mesa de conversa os desafios e as oportunidades na bovinocultura mato-grossense.
Um dos pontos mais relevantes do evento foi a constatação de que, embora sejam muitas as exigências quanto à produção sustentável, a ideia principal de quem está envolvido com o setor é favorecer o todo. O coordenador do Grupo de Trabalho Amazônia Legal, Rafael da Silva Rocha, deixou clara essa intenção ao detalhar o trabalho realizado pelo órgão em relação à cadeia. “O objetivo não é punir frigoríficos ou fazendas, nem é arrecadar com multas”, diz. “Buscamos, cada vez mais, melhorar e regularizar a cadeia produtiva da pecuária.”
Muito se falou durante o encontro a respeito da relação entre as ações de orientação e as punitivas, e da importância de, durante os processos de avaliação da condição ambiental das fazendas, serem consideradas as diferentes condições de cada propriedade. “Há uma infinidade de situações de baixa complexidade que podem ser fáceis de resolver, trazendo de volta para as negociações um produtor que foi excluído em um processo legitimado pelo mercado”, diz Lisandro Inakake, gerente em Cadeias Agropecuárias do Imaflora.
Na opinião do executivo do Imaflora, é importante formalizar instrumentos para reintegrar esse produtor à cadeia. Uma das medidas seria a diferenciação do desmatamento entre situações insolúveis, de alta complexidade de resolução, e as de baixa complexidade. A partir dessa análise, seria possível também estabelecer uma condição mais justa para cada pecuarista. Assim, quem se enquadra nas situações de baixa complexidade pode ter a condição de resolver o que for necessário, sem ser punido como alguém que está em uma situação mais complicada. Essa classificação poderia até influenciar a cessão de créditos para investimentos. As instituições financeiras também têm restrições baseadas nas condições ambientais das fazendas – devem, inclusive, cumprir um normativo estabelecido pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban), que entrou em vigor em março de 2023.
Um dos grandes desafios no processo de transparência da cadeia produtiva de carne bovina é o monitoramento dos fornecedores indiretos. “É aí que se concentra parte importante do desmatamento”, afirma Cintia Cavalcanti, analista sênior de Cadeias Agropecuárias da organização Amigos da Terra (AdT). “O TAC evoluiu, enxergamos um progresso dos frigoríficos desde o início, mas há essa questão dos indiretos que ainda não foi endereçada.”
Cintia vai além na lista de desafios. “Temos um problema maior, que é a falta de transparência dos dados da Guia de Trânsito Animal (GTA)”, diz. “Isso dificulta até mesmo para o MPF realizar a auditoria dos indiretos. Como vai ser possível exigir que os frigoríficos monitorem os fornecedores indiretos se o Ministério da Agricultura e Pecuária não tem dados sobre os indiretos?” De acordo com a executiva da AdT, seria necessário que as agências estaduais de defesa sanitária começassem o oferecer uma base mínima de dados para a realização do monitoramento.
Por tudo o que se debateu durante o evento “Diálogos Boi na Linha”, ficou claro que a integração das informações ao longo de toda a cadeia é primordial para solucionar grande parte dos desafios. Esse foi um dos pontos apresentados pela secretária adjunta de Gestão Ambiental da Secretaria de Estado do Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema), Luciane Bertinatto. De acordo com a executiva, está em desenvolvimento um sistema digital do Cadastro Ambiental Rural (CAR) por município, para facilitar a validação do registro.
Esse processo tende a garantir mais precisão na coleta de informações e na representação da realidade dentro das fazendas. “Às vezes, uma movimentação do cascalheiro pode disparar um alerta, a partir de uma varredura automática, e aí já entra no polígono da questão ambiental”, afirmou Luciane. Há dois pontos relevantes nessa história. Um deles é a importância de o produtor solicitar uma autorização quando for fazer a retirada ou a movimentação do cascalheiro. O outro é a necessidade de se entender melhor o campo. “Precisamos ter o cuidado de conhecer o que acontece nas fazendas e não ficar só com as decisões tomadas sob o ar-condicionado.”
De maneira geral, a troca de informações e a oportunidade de os integrantes dos mais diversos elos da cadeia produtiva de carne bovina realizarem uma conversa direta foram a grande recompensa do encontro. “Não apenas discutimos os problemas, como trouxemos várias soluções”, afirmou Cintia Cavalcanti, da AdT. A opinião da executiva foi compartilhada por Lisandro Inakake, do Imaflora: “O evento consolida o papel do Programa Boi na Linha em apoiar tanto a inclusão quanto o desenvolvimento sustentável, engajando todos os participantes em uma agenda positiva para o futuro da pecuária no País.”
Iniciativas como essas, que visam à produção de carne bovina de qualidade e com sustentabilidade, levaram o Mato Grosso a ser um dos destaques da China International Import Expo (CIIE), realizada em novembro, em Xangai. O presidente do Instituto Mato-Grossense da Carne (Imac), Caio Penido, que integrava a comitiva do Brasil na feira, fez questão de gravar com seu celular e publicar em seu perfil no Instagram a fila de visitantes, que chegou a dar volta no estande exclusivo do estado, para degustar o MT Steak, um corte bovino vencedor de uma competição promovida pelo Imac no ano passado e que virou uma marca mato-grossense.
Matéria publicada oficialmente na edição 46 da Revista Plant Project.